Música para Órgão na Missa
Música para Órgão na Missa
Todos os documentos do Magistério da Igreja (que eu conheço) são unânimes ao afirmar que «o canto gregoriano sempre foi considerado como o modelo supremo da música sacra, podendo com razão estabelecer-se a seguinte lei geral: uma composição religiosa será tanto mais sacra e litúrgica quanto mais se aproxima no andamento, inspiração e sabor da melodia gregoriana, e será tanto menos digna do templo quanto mais se afastar daquele modelo supremo» (S. Pio X, 22-11-1903). Ora, tocar num órgão de tubos as velhas melodias gregorianas compostas para serem cantadas a uma só voz, em uníssono coral, pode parecer um empobrecimento das potencialidades deste instrumento, o qual, «desde sempre e com boa razão, (...) é classificado como o rei dos instrumentos musicais, porque retoma todos os sons da criação e (...) dá ressonância à plenitude dos sentimentos humanos, da alegria à tristeza, do louvor à lamentação. Além disso, como toda a música de qualidade, ao transcender a esfera simplesmente humana, remete para o divino. A grande variedade dos timbres do órgão, do piano até ao fortíssimo arrebatador, faz dele um instrumento superior a todos os outros. Ele é capaz de dar ressonância a todos os aspectos da existência humana. De algum modo, as múltiplas possibilidades do órgão recordam-nos a imensidade e a magnificência de Deus» (Bento XVI, 13-9-2006). Com efeito, encontram-se na net várias partituras para acompanhar o canto gregoriano. No entanto, muitas destas harmonizações retiram importância ao desenho melódico original, dão-lhe um carácter tonal e não modal, e deixam o organista na ignorância quanto ao ritmo correcto, o qual não pode ser expresso sem recorrer aos neumas originais de S. Gall e Laon. Por isso, é fundamental que o organista estude primeiro o canto gregoriano per se, que se imbua do espírito mais perfeito da música sacra e depois o transporte para o órgão. Quando estiver à vontade no tangimento da melodia gregoriana, com o ritmo e registo mais apropriados, poderá querer, por exemplo, acrescentar-lhe um pedal que acompanhe a melodia, e a destaque. De facto, foi de modo semelhante que surgiram os primeiros géneros de música polifónica na Idade Média, a chamada polifonia gótica: uma melodia muito elaborada (melismática) inspirada no canto gregoriano clássico era cantada pela voz principal, enquanto as outras lhe criavam um ambiente harmónico coerente. Com o tempo, as outras vozes foram ganhando também destaque, umas vezes imitando a melodia gregoriana original, outras vezes nem tanto. Por altura do Renascimento (séculos XV-XVII), muitas das composições litúrgicas ainda se inspiravam claramente na melodia gregoriana original; outras, mais livres - os motetes -, embora não seguissem o desenho melódico gregoriano, nem por isso abandonavam o ambiente modal e a suavidade rítmica que garantem aquele sabor a solenidade e respeito indispensável duma celebração litúrgica. Na verdade, a polifonia do Renascimento é considerada o género musical mais nobre e digno de integrar a Liturgia de Rito Romano - claro está que a seguir ao canto gregoriano -, como reafirmou em Novembro de 2012 o Papa Bento XVI:
«Comprometei-vos por melhorar a qualidade do canto litúrgico, sem ter receio de recuperar e valorizar a grande tradição musical da Igreja, que no gregoriano e na polifonia tem duas das expressões mais nobres (cf. Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 116).»
Significa isto que muito do repertório composto no período barroco e seguintes, na verdade não será o mais conveniente de ser interpretado durante a Liturgia - inclusive Bach, e Mozart! -, a pesar de ser música sacra de suprema beleza, que sem dúvida a tanta gente toca e aproxima de Deus. Alguns Papas (p.ex. S. Pio X em 1903, Pio XI em 1928) apontam mesmo como o mais digno de ser interpretado durante a Liturgia o compositor italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-94), cujas belas obras ainda hoje se ouvem durante a Liturgia Papal. Mas há muitos outros autores a conhecer: Johannes Ockeghem, Orlando di Lasso, Josquin des Prés, Thomas Thallis, William Byrd, Francisco Guerrero, Tomás Luis de Victoria, entre tantos, e tantos outros. E lusófonos? Também os temos: Pedro de Escobar, Manoel Cardoso, Filipe de Magalhães, Francisco Martins, João Lourenço Rebello, Diogo Dias Melgaz, D. João IV, Frei Roque da Conceição... Para obter as suas partituras, há alguns recursos úteis, tais como o sítio dos Órgãos de Portugal, a CPDL, a colecção Portugaliae Musica, ou ainda, para os puristas que gostam da notação mensural branca, a Portuguese Early Music Database.
Este repertório, composto originalmente para côro (por vezes com outros instrumentos), não está, de modo algum, ao alcance da esmagadora maioria dos nossos córos litúrgicos. Muitas paróquias não têm cantores em número e qualidade suficientes para interpretarem o canto gregoriano ou a polifonia do Renascimento com a dignidade que estes exigem, sobretudo se pensarmos que o texto litúrgico do próprio varia diariamente, o que obriga a uma mudança contínua de repertório. Neste aspecto, um organista interessado e persistente poderá mais facilmente estudar uma ou outra peça para tocar durante a Liturgia, e desempenhar um papel insubstituível para a glorificação de Deus e santificação dos fiéis, para que mais e mais deles se sintam em casa quando ouvem a Sua música. Sim: tocar no órgão de tubos as composições polifónicas para múltiplas vozes que a Igreja nos legou através dos séculos. Deste modo, não correremos o risco do improviso genérico fora da tradição. Pode parecer estranho tocar a partir de um sistema de 4 pentagramas ou mais, mas no passado era o que os tangedores do órgão faziam, como se vê por exemplo pelas Flores de Música do Padre Manuel Rodrigues Coelho (1620):
Fonte https://divinicultussanctitatem.blogspot.com.br
Capela Gregoriana Incarnationis