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Paixão segundo São Mateus, a mais dramática partitura de Bach





Bach – Paixão segundo São Mateus: Coro de Abertura: Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen!

 

Se perguntarmos a dez “especialistas” em música clássica qual a maior obra prima musical de todos os tempos, é bem provável que 9 deles respondam: a Paixão segundo São Mateus BWV.244, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). E com toda essa propaganda, o ouvinte comum fica lá três horas ouvindo a música para no final arriscar um “é bonito, sem dúvida… mas é meio chato, não?”. Afinal, o que há de tão extraordinário na Paixão segundo São Mateus? Quais são os segredos escondidos sob sua partitura? É o que tentaremos responder nesta série de dez posts (enormes, hein!).


Um breve histórico da obra


Vamos voltar uns 300 anos no tempo, lá para a cidade de Leipzig, na Alemanha. Com a falência do único teatro que apresentava óperas na cidade, a vida musical daquela região se concentrou ainda mais nas igrejas luteranas, onde a música desempenhava um papel fundamental nos cultos religiosos. Diferente das igrejas católicas, que foram projetadas para ter bastante reverberação e assim fazer o visitante sentir a mística presença de Deus, as igrejas luteranas foram construídas para que a palavra do pastor fosse claramente entendida em qualquer lugar da igreja. Portanto, sua acústica também favorecia a execução de obras musicais religiosas.



E a última moda naquela época era a apresentação de “paixões musicais”. Paixão, que vem do latim passio, sofrimento, é a história da crucificação de Jesus conforme contada por um dos quatro evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas ou João. O costume era ler uma das Paixões durante o culto em dias específicos do calendário da Quaresma, o período de 40 dias (descontando os domingos) que antecede a Páscoa. Até que, no começo do século XVIII, compositores começaram a colocar em música o texto da Bíblia, interpolando aqui e ali uma ária ou um coral. A prática conquistou várias cidades até chegar em Leipzig em 1721, quando Johann Kuhnau (1660-1722), o diretor musical das principais igrejas da cidade, apresentou uma Paixão segundo São Marcos de sua autoria.




Bach chegou na cidade em maio de 1723 para ocupar o cargo de Kuhnau, falecido no ano anterior. Seu trabalho incluía escrever música para os cultos religiosos semanais, e assim, para sua primeira Sexta-feira Santa em Leipzig em 1724, ele escreveu a primeira versão de sua Paixão segundo São João BWV.245. Quase podemos imaginar Bach se perguntando, ao final do culto: “o que farei para o próximo ano?”. Alguns esboços de sua próxima Paixão datam de 1725, mas é provável que ele tenha iniciado mesmo em 1724.


A nova Paixão não ficou pronta do dia para a noite: em 1725 ele apresentou uma segunda versão da Paixão segundo São João, e em 1726 ele reapresentou uma Paixão segundo São Marcos escrita por Reinhard Kaiser e/ou Friedrich Nicolaus Brauns em 1713. Foi só no ano seguinte que a Paixão segundo São Mateus teve sua estréia, em 11 de abril de 1727, na Thomaskirche, a igreja luterana de São Tomás.



Antes da reforma de 1732, a Thomaskirche possuía duas galerias com um órgão cada. Em cada galeria Bach colocou uma orquestra e um coro independentes, ora tocando juntos, ora separados, ora alternando-se durante a música (e o cristão lá embaixo, maravilhado com aquele diálogo de sons). Não é à toa que Bach a chamava de “a Grande Paixão”: é uma obra escrita para duas orquestras, dois coros e vários solistas!


Durante a vida de Bach, a Paixão segundo São Mateus foi repetida pelo menos mais três vezes: em 1729, 1736 e em 1742, sofrendo pouquíssimas revisões em cada uma das performances. A partitura original de 1727 está perdida; o belo manuscrito autógrafo que nós podemos contemplar digitalmente clicando aqui (viva a internet!) foi redigido carinhosamente por Bach no periodo entre 1743 e 1746 para seu próprio deleite. Sabe-se que o compositor tinha muitos ciúmes desse manuscrito, e o conservava sempre em bom estado: ele mesmo admitia que “a grande Paixão” era a maior de suas obras.


Depois da morte de Bach, a “grande Paixão” permaneceu sepultada no manuscrito até a próxima performance em 11 de março de 1829, quando o jovem compositor Felix Mendelssohn, com apenas 20 anos de idade, preparou e conduziu uma versão reduzida e adaptada da obra em Berlim. Para se ter uma idéia da tal “adaptação”, Mendelssohn regeu do piano em torno de 400 músicos, adicionando clarinetes para satisfazer o gosto musical dos alemães na época.

Coro da Thomaskirche e o órgão Sauer: dá um passinho pro lado que a Filarmônica de Berlim está chegando aí





Espera aí: duas orquestras? Dois coros? 400 músicos?


Ok, falando assim alguns podem pensar em massas orquestrais karajânicas ou richterísticas, mas na verdade não havia tanto espaço assim nas galerias da Thomaskirche. Então acredita-se que, na melhor das circunstâncias, havia de 60 a 65 músicos nas primeiras apresentações da Paixão. Para quem acha que isso dá uma grande orquestra, vamos lá, contem comigo: 2 flautas, 2 oboés (os mesmos músicos trocando oboés normais por oboés d’amore ou oboés da caccia quando necessário); 3 primeiros violinos, 3 segundos violinos, 2 violas; para baixo contínuo, 1 violoncelo, 1 contrabaixo, 1 fagote e 1 órgão; 3 sopranos, 3 contraltos, 3 tenores, 3 baixos, tudo isso multiplicado por dois já dá 56 músicos. Somando a isso mais 1 viola da gamba, um terceiro coro de sopranos (adicionado somente na revisão de 1743) e cantores solistas…


A estrutura da Paixão segundo São Mateus

As vigas-mestras que sustentam essa grandiosa obra vêm da Bíblia: a narração da Paixão de Cristo seguindo palavra por palavra os capítulos 26 e 27 do Evangelho de São Mateus. O texto, porém, é fatiado em 27 pequenas seções no decorrer das duas partes da obra:


Theodor van Loon: Jesus chamando Mateus para ser apóstolo


O narrador da história é o evangelista Mateus, cantado por um tenor; os personagens da história, por exemplo Pedro, Pilatos, Caifás, etc, ganham vida na voz de vários solistas (com frequência, cantores do coro). Todos estes cantam em recitativo secco, acompanhados por acordes simples no baixo contínuo entremeados por pausas, pois toda a atenção merece estar nas vozes que contam a história. Jesus, cantado por um baixo, é digno de um tratamento mais nobre e aparece em recitativo accompagnato, com acordes sustentados pelas cordas. Querem ouvir um exemplo? Já as frases ditas por grupos de pessoas como os discípulos ou o povo (ou seja, a turba) são musicadas em forma de moteto com acompanhamento da orquestra.


Bach: Paixão segundo São Mateus – 04b. Ja nicht auf das Fest


(Sim, na maioria das vezes os coros de turba são curtinhos – e deliciosos – assim mesmo).

De tempos em tempos, as situações narradas pelo Evangelho são comentadas pelos cantores solistas em forma de árias, com poemas escritos por Christian Friedrich Henrici (1700-1764), o famoso libretista de Bach mais conhecido como Picander:


São 14 árias ao todo, sendo que 10 delas são precedidas de um recitativo em estilo arioso (ou seja, um meio termo entre o recitativo accompagnato e a ária). Duas grandes massas corais abrem e fecham a Paixão, sendo que a última é precedida também de recitativo arioso. Há apenas um dueto na obra, acompanhado de coro (o nº 27). Em resumo, as interpolações de Picander somam 28 números.

Por fim, temos os corais luteranos, que comentam o Evangelho da mesma forma que as árias:


São 12 corais simples, como este aqui…


Bach: Paixão segundo São Mateus – 10. Ich bins ich sollte büssen (Philippe Herreweghe – Collegium Vocale Gent):



… e 1 “especial” (o nº 29), o qual encerra a primeira parte da Paixão. Os corais luteranos faziam parte dos cultos religiosos, e assim suas melodias e textos eram muito familiares para a audiência. Os corais têm várias estrofes repetindo sempre a mesma melodia. Bach escolheu os corais e as estrofes cuidadosamente, sem mexer no texto: seu único trabalho foi harmonizar as melodias, da mesma forma que ele fazia em suas outras obras.


Somando tudo, temos um total de 68 números ou movimentos. E aqui surge a primeira coincidência interessante desta análise. Nas obras de Bach, é comum encontrarmos algumas associações numerológicas. Na mais famosa delas, atribuímos um número para cada letra (A=1, B=2, C=3, … H=8) e somamos os valores das letras BACH, resultando em 14, o “número de Bach”. Especialistas justificam assim o porquê de termos 14 Contrapunctus na Arte da Fuga BWV.1080, 14 canons sobre o baixo das variações Goldberg BWV.1087, e assim por diante. Aqui na Paixão segundo São Mateus, o “14” também aparecerá em momentos cruciais da obra, como uma espécie de assinatura do compositor; porém antes de começarmos a análise efetivamente, poderíamos fazer a seguinte conta: B+A+C=6 e H=8, o que dá “68”. Pura coincidência, claro… mas é o tipo de coincidência muito comum de se encontrar nas obras de Bach…


Então ficamos assim combinados: durante os próximos dias, mergulhe de cabeça nessa obra profunda que é a Paixão segundo São Mateus de Bach. Afinem seus ouvidos e preparem as gravações (e partitura, se tiverem à mão!),




Autor: Amancio Cueto Jr.

http://euterpe.blog.br/os-segredos-da-paixao-segundo-sao-mateus-1/

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